quinta-feira, 2 de abril de 2015

O show de João Gilberto em Maringá

Que Chico Buarque, Caetano Veloso e Vinicius de Moraes fizeram shows em Maringá, quase todos nos anos setenta, isso eu já sabia. A voz aflautada e tremelicante do outro lado da linha telefônica, ao ouvir minha resposta, parecia um tanto desapontada. Estava à espera de que ela se despedisse. Eu encerraria a ligação e voltaria ao trabalho. Quase sussurrando, a voz me perguntou: "E o que você sabe sobre o show do João Gilberto Prado Pereira de Oliveira em Maringá?".

Fiquei mudo. Um gelo danado correu minha espinha. João Gilberto nunca tocou na minha cidade. Não há registros, nunca ouvi conversa alguma, sou repórter há quanto anos mesmo?, e, claro, eu conheceria os detalhes do lendário concerto, saberia de cor o repertório de um show do João Gilberto em Maringá. Só podia ser brincadeira.

"Um show do João Gilberto?"

"Isso. Tenho fotos, umas cartas e algumas histórias. Quer publicar um texto sobre isso?"

Claro, claro, eu disse. Tenho todo o tempo do mundo, como foi exatamente esse show?, você estava lá?, onde foi?, em qual ano?, comecei a disparar, enquanto me ajeitava na cadeira, bem perto do computador, com o telefone apoiado no ombro direito. A voz, então, surgiu num risinho tímido, desses com os dentes cerrados.

"Foi um concerto quase secreto, organizado pelos ícones do comunismo na cidade. O Calil..."

Devia ser alguém com certa idade, talvez uma senhora com seus setenta e poucos anos.

"... o Calil... Ah, eu vou te contar tudo, com todos os detalhes. Mas tem que ser aqui em casa."

Claro, claro, respondi, e fui anotando o endereço: um apartamento no terceiro andar do edifício Atlantis, na Avenida Santos Dumont, 2020. O nome da senhora: Jandira Martins. Avisei o fotógrafo e pedi que me acompanhasse urgentemente, ainda era umas três e pouco da tarde.

A caminho do apartamento, com o fotógrafo dirigindo, liguei para o Reginaldo Dias. Historiador, intelectual de esquerda e fã de boa música, ele sabe da minha devoção por João Gilberto. Por sorte, não demorou para atender.

"Oi, Reginaldo! É o Gaioto. Seguinte: o que você pode me dizer sobre o show do João Gilberto aqui na cidade?"

Conheço o Reginaldo. Ele não é de ficar enrolando. Pela primeira vez, ele ficou mudo.

"Alô, Reginaldo?"

Talvez fosse o celular. Essas operadoras de hoje estão cada vez piores.

"Reginaldo, tá me ouvindo?"

Só então ele respondeu, a voz grave e ameaçadora:

"Quem te disse sobre esse show?"

"Uma amiga minha. Tem fotos, cartas e um punhado de histórias. Parece que foi organizado pelos comunistas..."

"Sinto muito. Nada tenho a dizer sobre isso."

Tentei insistir. Fiz outra pergunta.

"Não vou falar sobre o assunto", respondeu o Reginaldo Dias, um pouco alterado, batendo o telefone na minha cara.

Achei estranha aquela reação.Levamos quase uma hora e meia para ir ao apartamento. Antes, o fotógrafo teve que fazer uma imagem de uma dupla sertaneja e de um empresário que ganhou um concurso de jovens empreendedores, algum treco assim. Estacionamos o carro na frente de uma igreja, na Santos Dumont, a poucos metros do prédio. Amarildo, o porteiro que trabalha há quase cinco anos no edifício, disse que Jandira tinha saído há poucos minutos, com uma mala pequena. Pediu que ele ligasse para um táxi e partiu em direção ao aeroporto.

"Estava nervosa, agitada. Disse que faria uma longa viagem, sem data pra voltar. É uma moradora muito querida por todos aqui do prédio. Nunca recebe visitas, não tem parentes. Nunca tinha visto ela desse jeito."

Se a velha partiu para uma viagem em cima da hora, e o Reginaldo Dias, sabe-se lá por quais motivos, não quis abrir o bico, fui falar com Ivana Veraldo, professora da UEM cheia de boas histórias do cenário esquerdista aqui na cidade. Talvez, em off, ela pudesse esclarecer o mistério de João Gilberto tocando num evento comunista, a pedido, quem sabe, do tal Calil (Haddad?). Sei que ela toma café na Brioche Crocante, diariamente, na Zona 7. Dei um pulo na padaria. Ivana estava sozinha, na mesa próxima aos banheiros.

"Oi, Ivana."

Sempre acessível e de boa prosa, ela fechou a cara quando me viu.

"O que teve demais nesse show do João Gilberto em Maringá? Quem é o tal Calil? É o Calil Haddad?"

Ivana tomava um espresso e comia uma torta de morango. De tão nervosa, acabou derrubando o café na mesa. Ela toda estava tremendo.

"Você nunca vai ouvir nada de mim."

Foi a única declaração de Ivana. Ela saiu visivelmente consternada da panificadora e nunca mais atendeu meus telefonemas.

Pelo Facebook, fui explicando tudo ao Ademir Demarchi. O poeta visualizou a mensagem e se recusou a enviar uma explicação. Limitou-se a uma concisa ameaça: "Se você insistir, Gaioto. Meto-lhe uma sova. Você não sabe com quem tá mexendo".

Com o Nelson, do Idê Cabeleireiro, o barbeiro que frequento desde a infância e que escuta todo o tipo de história surreal em seu salão, foi a mesma coisa. Nelson se recusou a falar sobre o tal show e, armado com uma vassoura, foi me enxotando do seu salão aos gritos de "fora golpista!, fora fascista!".

Recorri, então, ao escritor Oscar Nakasato. O único sujeito que topou responder alguma coisa. E ainda aproveitou para disparar uma ameaça. Resolvi publicar o e-mail, aqui, na íntegra.

"Caro Gaioto, não sei como você soube disso. Nem quero saber. Além do mais, desista. Estou escrevendo um romance sobre esse show do João Gilberto. Já tenho 456 páginas. Se você publicar algo sobre essa história, eu te processo. Um abraço, Oscar."

Na dúvida, estou publicando tudo, até sem saber, ao certo, se entrevistas, diálogos e ameças, aconteceram, de fato, ou não. Tudo parece um filme surrealista do Buñuel. De toda forma, vale a pena encarar um processo judicial por causa do João Gilberto. Quem sabe, com sorte, até o próprio cantor será intimado a depor e dar detalhes sobre o tal concerto. Aliás, se você sabe alguma história sobre o tal show, por favor, entre em contato pelo meu e-mail (gaioto@odiario.com) ou pelo telefone (3221-6618). Qualquer detalhe já ajuda. E até desembolso uma grana por fotos ou pelo setlist, autografado ou não, do show de João Gilberto em Maringá.

Publicado no Diário (24/3/2015)

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